Por Fernando Telles
Acordou e piscou os olhos algumas vezes para que calmamente
se acostumasse com a claridade. Espreguiçou-se envolvendo os pés no edredom e
pensando que tinha de levantar. Devia levantar. Era necessário. Foi ao banheiro
e escovou os dentes. Escovou os cabelos. Por fim escovou a tristeza do rosto e
sorriu - não muito convincente. Com certa tranquilidade, retirou temerosa a
aliança do dedo esquerdo. Completava trinta anos. E era livre de novo. Deixou
uma lágrima brincar caridosa pelo rosto nesse momento, como quem dança um
parabéns saído dos olhos, dirigido aos lábios e que finda infantil no chão, ao
lado dos pés. Pegou a bolsa, as chaves, os cacos de si mesma e ligou o carro.
Era preciso.
Ele acordou com o cachorro lambendo seu rosto. Sorriu, bobo,
da simplicidade do mundo naquela manhã de verão. O Sol convidava para um
passeio que o cão insistiria a manhã toda em ter. Levantou-se. Era necessário.
Pegou uma caneca de café e tropeçou na bicicleta jogada na sala enquanto
tentava chegar até uma pilha de livros na qual queria se sentar. Vestiu um
moletom. Colocou a coleira no cão e foi rumo à praia. Era preciso.
O carro dela parou devagar naquele sinal fechado. Deslizando
pelo asfalto quente, entre os banhistas, entre as muitas vidas que ela não
conhecia, entre o tempo, entre quem ela fora e que não era mais. Sentiu-se
entretida com a paisagem, como se não pertencesse a ela e só olhasse de fora,
com a jovialidade perdida. Quedou-se introspectiva.
Ele olhou o sinal fechar. O cachorro, como se intuitivo de
que aquela era sua deixa, correu. Rindo, ele foi puxado pela coleira. Até que
seu cão se jogou contra um dos carros que pacienciosamente esperavam para
seguir seu curso. Para ir buscar o futuro.
Ela mirou um cão se jogar contra seu carro e, em um grito de
esquecimento, pegou-se rindo por ser tão assustada.
Como em fotografias antigas do cinema mudo, paralíticas,
fixadas, tortas, lentas e, ainda assim, certas, ele a observou rindo. Sentiu a
manhã invadir com força suas vísceras sem ser convidada. Fazia tanto tempo.
Ela observou o dono do cachorro rindo e correndo atrás do
companheiro. Lembrou-se primeiro do cheiro, aquela mistura de protetor solar,
almíscar e madeira. Quente. O corpo dele nunca era frio. Havia sido um amor
sinestésico nos sentimentos. Mas fazia tanto tempo.
Reconheceram-se e se cumprimentaram.
- Oi.
- Tudo bem?
- Tudo certo, eu vou indo e você?
- Eu vou indo, correndo, você sabe.
- Na loja ainda?
- Na loja e você?
- Com os quadros.
- Eram lindos.
- Eram seus. Fiz para você.
Silêncio. Ela olhou para o sinal.
- Vai abrir.
- Vai abrir.
- Me liga?
- Você quer? Te ligo.
- Liga?
- Ligo.
- Adeus.
Vermelho. Verde. Ela acelera o carro, tão rápido quanto o
seu coração havia se acelerado. Vai embora, esquece que naquele entroncamento
de vias o passado encontra o futuro. Ele era uma via já percorrida. Agora o
marido também era ex. Namorados antigos. Só guardou o cheiro. Aquele cheiro
seria sempre dele.
Ele foi ficando para trás e ela foi ficando pequena no seu
campo de visão. Pegou o cão e foi até a praia. Soltou a coleira, como há muito
ela havia se soltado da coleira que ele pusera nela, segundo ela dizia.
O sol brilhou mais fraco. O vento bateu mais forte. E o
sinal piscava: verde, vermelho, verde, vermelho... Os carros seguiam, as
pessoas seguiam; a vida seguia seu fluxo intransponível.