quinta-feira, 30 de maio de 2013

Sinal fechado

Por Fernando Telles


    Acordou e piscou os olhos algumas vezes para que calmamente se acostumasse com a claridade. Espreguiçou-se envolvendo os pés no edredom e pensando que tinha de levantar. Devia levantar. Era necessário. Foi ao banheiro e escovou os dentes. Escovou os cabelos. Por fim escovou a tristeza do rosto e sorriu - não muito convincente. Com certa tranquilidade, retirou temerosa a aliança do dedo esquerdo. Completava trinta anos. E era livre de novo. Deixou uma lágrima brincar caridosa pelo rosto nesse momento, como quem dança um parabéns saído dos olhos, dirigido aos lábios e que finda infantil no chão, ao lado dos pés. Pegou a bolsa, as chaves, os cacos de si mesma e ligou o carro. Era preciso.
   Ele acordou com o cachorro lambendo seu rosto. Sorriu, bobo, da simplicidade do mundo naquela manhã de verão. O Sol convidava para um passeio que o cão insistiria a manhã toda em ter. Levantou-se. Era necessário. Pegou uma caneca de café e tropeçou na bicicleta jogada na sala enquanto tentava chegar até uma pilha de livros na qual queria se sentar. Vestiu um moletom. Colocou a coleira no cão e foi rumo à praia. Era preciso.
O carro dela parou devagar naquele sinal fechado. Deslizando pelo asfalto quente, entre os banhistas, entre as muitas vidas que ela não conhecia, entre o tempo, entre quem ela fora e que não era mais. Sentiu-se entretida com a paisagem, como se não pertencesse a ela e só olhasse de fora, com a jovialidade perdida. Quedou-se introspectiva.
      Ele olhou o sinal fechar. O cachorro, como se intuitivo de que aquela era sua deixa, correu. Rindo, ele foi puxado pela coleira. Até que seu cão se jogou contra um dos carros que pacienciosamente esperavam para seguir seu curso. Para ir buscar o futuro.
   Ela mirou um cão se jogar contra seu carro e, em um grito de esquecimento, pegou-se rindo por ser tão assustada.
Como em fotografias antigas do cinema mudo, paralíticas, fixadas, tortas, lentas e, ainda assim, certas, ele a observou rindo. Sentiu a manhã invadir com força suas vísceras sem ser convidada. Fazia tanto tempo.
     Ela observou o dono do cachorro rindo e correndo atrás do companheiro. Lembrou-se primeiro do cheiro, aquela mistura de protetor solar, almíscar e madeira. Quente. O corpo dele nunca era frio. Havia sido um amor sinestésico nos sentimentos. Mas fazia tanto tempo.
Reconheceram-se e se cumprimentaram.
- Oi.
- Tudo bem?
- Tudo certo, eu vou indo e você?
- Eu vou indo, correndo, você sabe.
- Na loja ainda?
- Na loja e você?
- Com os quadros.
- Eram lindos.
- Eram seus. Fiz para você.
Silêncio. Ela olhou para o sinal.
- Vai abrir.
- Vai abrir.
- Me liga?
- Você quer? Te ligo.
- Liga?
- Ligo.
- Adeus.
    Vermelho. Verde. Ela acelera o carro, tão rápido quanto o seu coração havia se acelerado. Vai embora, esquece que naquele entroncamento de vias o passado encontra o futuro. Ele era uma via já percorrida. Agora o marido também era ex. Namorados antigos. Só guardou o cheiro. Aquele cheiro seria sempre dele.
     Ele foi ficando para trás e ela foi ficando pequena no seu campo de visão. Pegou o cão e foi até a praia. Soltou a coleira, como há muito ela havia se soltado da coleira que ele pusera nela, segundo ela dizia.
    O sol brilhou mais fraco. O vento bateu mais forte. E o sinal piscava: verde, vermelho, verde, vermelho... Os carros seguiam, as pessoas seguiam; a vida seguia seu fluxo intransponível.

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