domingo, 3 de agosto de 2014

Tatuagem

    O barulho agonizante da agulha elétrica marcava não só um desenho na pele de Carla, mas também eternizava o fim de mais um relacionamento. Eram 6 mal acabados e, com eles, 6 tatuagens. Ela não sabia exatamente qual era o motivo de cada uma delas estar ligada a cada um de seus relacionamentos: talvez quisesse abafar a dor do término com uma dor maior....

     Carla não era o tipo de mulher comum, mas também não poderia ser classificada como incomum. Suas tatuagens eram feitas em locais estrategicamente escondidos, para que apenas ela as vissem sempre, ou um novo namorado que  atravesse a levá-la para cama. Ela não sabia exatamente qual era o motivo de cada uma delas estar ligada a cada um de seus relacionamentos: talvez servissem como um aviso para lembrá-la de como deram errado...

   Os desenhos não faziam referência direta a nenhum dos homens; apenas ela sabia da ligação entre cada um deles. Todo dia, enquanto se despia para o banho, gostava de observar as marcas em seu corpo com as mãos e as sentir em seu pensamento. Ela não sabia exatamente qual era o motivo de cada uma delas estar ligada a cada um de seus relacionamentos: talvez precisasse de algo “palpável” para  sempre se lembrar de seu passado...


     Carla sabia que seria sempre assim. Gostava de tatuagens e gostava dos homens; não deixaria de seguir sua regra mesmo que suas marcas se tornassem visíveis a qualquer um, só ela saberia o verdadeiro significado delas. Mas ainda assim, não sabia exatamente qual era o motivo de cada uma delas estar ligada a cada um de seus relacionamentos: talvez estivesse esperando o momento em que a tatuagem fosse apenas no coração...


sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

A moça do sonho

    Hoje tive um sonho.  Sonhei que uma moça havia me acordado. Não consegui ver seu rosto ao certo, ela apenas andava e pedia que eu a seguisse. Tive a sensação que a conhecia, mas não conseguia saber quem ela era, apenas atendi seu pedido.
    
    Ela cantarolava minha música preferida enquanto andávamos sem que eu soubesse exatamente para onde. Avistei uma casa ao longe. Era como se já conhecesse aquele lugar que até então parecia tão distante. Fomos nos aproximando e cada vez me sentia mais familiarizada com o ambiente.

    A casa era tão linda... e a moça ainda sem revelar seu rosto fez um gesto para que eu entrasse. Já na sala principal, parei no centro e olhei para cima. Era bem grande e extremamente confusa: cheia de portas e escadas que não davam a lugar algum.

    Minha curiosidade me guiou a começar minha exploração por tantas portas que ali havia. A jovem ficou parada na sala, enquanto eu passeava pela casa.

    A cada porta que abria, deparava-me com sonhos que já tive. Alguns muito bons, outros tantos ruins, todos estavam ali, numa casa sem fim.

    Depois de passar por tantos sonhos, atordoada, volto para sala principal, onde a moça continuava parada com a cabeça baixa sem que eu pudesse ver seu rosto. Percebendo minha presença, ela levanta seu rosto lentamente, deixando-me ainda mais atordoada.

    A moça que me levou a casa onde havia todos meus sonhos era eu mesma. Ela me olhava com um sorriso, e naquele momento, perguntei:


    - Isso tudo é real, não é?

terça-feira, 6 de agosto de 2013

Olhos nos olhos

    Olhos meus lacrimejados nos olhos teus completamente frios... Foi assim que terminou. Disse-me para ser feliz... Morri de ciúmes. Enlouqueci. E obedeci.
    O tempo passou como em qualquer história de amor mal acabada, e a história também passou. Um encontro casual no antigo bar da cidade grande me fez bem e melhor que você. Outros homens me amaram, fizeram-me sentir a mulher que sempre quis ser com você. Olhos meus maquiados e sedutores nos olhos teus totalmente surpresos...

    E agora, se precisar de mim, você sabe que pode vir. Mas o que vai fazer ao me ver tão feliz? O que vai dizer? Olhos meus piedosos nos olhos teus inteiramente mudos...

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Futuros amantes

    Antes de partir, pegou seu compacto aparelho que continha todos os rascunhos de seu amor antigo. Não que precisasse daquilo, mas André sempre foi apegado a coisas do passado; talvez sua profissão de antropólogo tivesse grande contribuição nisso, ou a profissão foi escolhida por essa forte característica? A verdade é que se sentiria melhor perto de algo conhecido em meio a tanto mistério que sua próxima missão reservaria, além de não acreditar totalmente que essa história havia acabado.
    O ano de 3013 chegou com a oportunidade de que ele precisava para encher o bolso e o coração: o novo trabalho consistia na pesquisa de uma cidade do milênio passado, que foi completamente submersa por um terrível tsunami: Rio de Janeiro. Para isso, precisava se deslocar para o litoral e liderar as buscas marítimas por vestígios de uma estranha civilização.
    Passados alguns meses do início de tamanho desafio, já cansado de infindáveis buscas fora e dentro de si, finalmente foi encontrada uma espécie de cofre, porém muito mais frágil e sem toda a tecnologia daqueles dias atuais. Depois de abri-lo sem rodeios e sem dificuldade, descobriu inúmeros pedaços de papel, com escritos típicos de email, mas no papel; havia também algumas fotos que revelavam a felicidade de um amor bem vivido. – “Essas coisas só acontecem no passado” – foi inevitável para André não ter esse pensamento...
    Por incrível que pareça, o material encontrado estava intacto, então movido pela curiosidade e por mero profissionalismo, sem dúvida, André se embarcou a decifrar aquele eco de antigas palavras: “Não se afobe, não, meu amor, que nada é pra já. Amores serão sempre amáveis. Futuros amantes, quiçá, se amarão sem saber com o amor que um dia deixei pra você...”
    Embalado pela melodia desses fragmentos manuscritos, ele pegou seu celular e enviou uma singela mensagem ao seu passado e futuro amor com os seguintes dizeres: “Eu sei.”.

    E ele realmente sabia...

segunda-feira, 8 de julho de 2013

Sem fantasia

    Mais um dia de trabalho se encerrava para o jovem Samuel. Resolveu ir à capela antes de recolher em seus aposentos. Estar em um castelo, ainda que como carteiro real, alimentava seus desejos de ser algo mais, para finalmente conseguir a atenção da sua amada rainha.
    Era errado, ele sabia, mas não conseguia evitar tê-la em seus mais belos pensamentos. E lá estava o jovem novamente no ambiente santo, para mais uma vez discutir com Deus seu amor tão fora da lei. Não sabia o motivo pelo qual se sentia extremamente atraído por uma mulher bem mais velha que ele, mas não existia beleza juvenil que chegava aos pés de tamanha elegância de sua amada. E sem dúvida, ela era bonita, de uma forma que Samuel não entendia, mas a ponto de deixá-lo completamente paralisado. Extremamente confuso e sem mais argumentos para a discussão diária, foi se deitar.
    No dia seguinte, em meio a uma tempestade só não mais tenebrosa que seus pensamentos, foi realizar mais uma entrega real; e, apesar de todas as dificuldades que o dia apresentava, conseguiu chegar a tempo de ver sua rainha na biblioteca admirando a vista privilegiada do pôr do sol. Dessa vez, seus olhos não se perderam nas belas curvas por trás das roupas tão luxuosas, eles foram direto à delicada face, que o fitava incessantemente. Logo depois da janela fechada que interrompeu a quase valsa dos olhares, e com aquela imagem real, encostou-se a uma árvore do bosque e acabou adormecendo.


    O vitral todo colorido e iluminado da biblioteca possuía uma vista privilegiada do bosque e do rio ao fundo, era com certeza uma das partes mais bonitas do castelo e também, a que Inês mais frequentava. Mais precisamente todo fim de tarde, com a desculpa de que, dali o pôr do sol era mais bonito. E realmente era, mas o pôr do sol não era tão interessante quanto aquele jovem camponês que trazia religiosamente neste mesmo horário as correspondências do castelo.
    Recolhida naquele aposento observando a chegada do jovem rapaz, humilde por natureza, mas de uma beleza nobre, sentia-se entorpecida por um desejo inexplicável, o queria para si. Era rainha, tinha tudo o que queria, mas receava tê-lo, mandava em tudo e em todos, menos em seu coração que ardia ao vê-lo chegar. Desta vez, demorou um pouco mais com seus olhos sobre o rapaz, e seus olhares se encontraram.
    Um pouco atordoada e sem saber o que sentir, fechou o vidro rapidamente, assentou-se numa cadeira e involuntariamente observou tudo ao seu redor. Aqueles quadros tradicionais de família, os símbolos, brasões da realeza, tudo muito peculiar de uma vida que a escolhera, sem ao menos perguntar se ela a aceitava, sufocava suas vontades, ocultava ainda mais seus desejos. Toda aquela exaustão de pensamentos a fez adormecer, ali mesmo.


    Como parte da sua rotina, Samuel está na capela, mas dessa vez em silêncio, ajoelhado, rendido a suas discussões divinas de que nada adiantavam. Percebeu que alguém se aproximava, mas não se mexeu, imaginando ser alguma camponesa devota; a proximidade de tal presença o incomodou, e quando se virou para confirmar sua dúvida, encontrou-se com aqueles olhos reais, e mais uma vez, tal beleza o deixou paralisado.
    Inês sorrindo, disse:
    - Aqui diante deste pedestal santificado, ocupando teu lugar de mensageiro, trago-te um recado do meu coração. Que Deus nos perdoe se isto for errado, ou que nos abençoe se for certo, mas dentro de meus sonhos, amar nunca foi pecado, anseio por um beijo seu. Vou te envolver nos cabelos, vem perde-te em meus braços, pelo amor de Deus. Não temas minha vida nobiliárquica, pois mais nobre do que isto, é meu sentimento por ti.
    E Samuel, sem hesitar, confessou:
    - Ah, como eu quero lhe dizer que custou tanto penar esse nosso encontro entre tantos desencontros. Eu quero lhe falar que de tanto lhe esperar eu almejei inúmeras tempestades superadas, vitórias nas batalhas invencíveis e até conseguir deixar Deus sem palavras, só para ser digno de seu amor, minha rainha.
    - Não, meu jovem. É assim que te quero: fraco, tolo, todo, meu.

    Uma despindo-se de sua realidade, e outro de suas fantasias, deram-se as mãos e foram ao encontro do sonho que, mesmo separados, sempre os uniram.

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Gota d'água

    Seria o finalzinho do começo de uma semana qualquer; mas para Paulo, o sol adormecendo marcava não só uma segunda feira que acabava: era o sangue estancado... a veia saltada...  a voz que restava... o desfecho da festa. E ele estava sendo a gota num mar de gente que causava a tormenta necessária para esse barco movimentar.
    O rapaz fazia parte de um grupo de estudantes de história, cansados de estudar inúmeras revoluções calados; ver a pátria amada adormecida há 21 anos, desde os caras-pintadas. O coração já não aguentava mais: “Deixa em paz...”
    A alegria calada agora gritava, meu corpo: “Por favor!”

    E tamanha desatenção... Foi a gota d’água!

quinta-feira, 30 de maio de 2013

Sinal fechado

Por Fernando Telles


    Acordou e piscou os olhos algumas vezes para que calmamente se acostumasse com a claridade. Espreguiçou-se envolvendo os pés no edredom e pensando que tinha de levantar. Devia levantar. Era necessário. Foi ao banheiro e escovou os dentes. Escovou os cabelos. Por fim escovou a tristeza do rosto e sorriu - não muito convincente. Com certa tranquilidade, retirou temerosa a aliança do dedo esquerdo. Completava trinta anos. E era livre de novo. Deixou uma lágrima brincar caridosa pelo rosto nesse momento, como quem dança um parabéns saído dos olhos, dirigido aos lábios e que finda infantil no chão, ao lado dos pés. Pegou a bolsa, as chaves, os cacos de si mesma e ligou o carro. Era preciso.
   Ele acordou com o cachorro lambendo seu rosto. Sorriu, bobo, da simplicidade do mundo naquela manhã de verão. O Sol convidava para um passeio que o cão insistiria a manhã toda em ter. Levantou-se. Era necessário. Pegou uma caneca de café e tropeçou na bicicleta jogada na sala enquanto tentava chegar até uma pilha de livros na qual queria se sentar. Vestiu um moletom. Colocou a coleira no cão e foi rumo à praia. Era preciso.
O carro dela parou devagar naquele sinal fechado. Deslizando pelo asfalto quente, entre os banhistas, entre as muitas vidas que ela não conhecia, entre o tempo, entre quem ela fora e que não era mais. Sentiu-se entretida com a paisagem, como se não pertencesse a ela e só olhasse de fora, com a jovialidade perdida. Quedou-se introspectiva.
      Ele olhou o sinal fechar. O cachorro, como se intuitivo de que aquela era sua deixa, correu. Rindo, ele foi puxado pela coleira. Até que seu cão se jogou contra um dos carros que pacienciosamente esperavam para seguir seu curso. Para ir buscar o futuro.
   Ela mirou um cão se jogar contra seu carro e, em um grito de esquecimento, pegou-se rindo por ser tão assustada.
Como em fotografias antigas do cinema mudo, paralíticas, fixadas, tortas, lentas e, ainda assim, certas, ele a observou rindo. Sentiu a manhã invadir com força suas vísceras sem ser convidada. Fazia tanto tempo.
     Ela observou o dono do cachorro rindo e correndo atrás do companheiro. Lembrou-se primeiro do cheiro, aquela mistura de protetor solar, almíscar e madeira. Quente. O corpo dele nunca era frio. Havia sido um amor sinestésico nos sentimentos. Mas fazia tanto tempo.
Reconheceram-se e se cumprimentaram.
- Oi.
- Tudo bem?
- Tudo certo, eu vou indo e você?
- Eu vou indo, correndo, você sabe.
- Na loja ainda?
- Na loja e você?
- Com os quadros.
- Eram lindos.
- Eram seus. Fiz para você.
Silêncio. Ela olhou para o sinal.
- Vai abrir.
- Vai abrir.
- Me liga?
- Você quer? Te ligo.
- Liga?
- Ligo.
- Adeus.
    Vermelho. Verde. Ela acelera o carro, tão rápido quanto o seu coração havia se acelerado. Vai embora, esquece que naquele entroncamento de vias o passado encontra o futuro. Ele era uma via já percorrida. Agora o marido também era ex. Namorados antigos. Só guardou o cheiro. Aquele cheiro seria sempre dele.
     Ele foi ficando para trás e ela foi ficando pequena no seu campo de visão. Pegou o cão e foi até a praia. Soltou a coleira, como há muito ela havia se soltado da coleira que ele pusera nela, segundo ela dizia.
    O sol brilhou mais fraco. O vento bateu mais forte. E o sinal piscava: verde, vermelho, verde, vermelho... Os carros seguiam, as pessoas seguiam; a vida seguia seu fluxo intransponível.